quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Vida cassete (2001)



  Fui criada num laboratório de materiais fonográficos. Eram milhares de irmãzinhas que eu ganhava todos os dias. Cada uma com seu estilo de música gravada. Eu, por exemplo, era de música sertaneja. O dono do laboratório, El Leon, mais conhecido como El Jodón entre os funcionários, enviava semanalmente uma imensa remessa para o Paraguai. Eu deveria estar entre ela, não fosse a idéia que ele teve de presentear sua amante, Luna Durango, uma renomada prostituta, estando eu entre o agrado. A moça ficou muito satisfeita. Foi uma época de muito sexo ao som da famosa dupla na versão pirata.
  Tive um choque quando ele terminou o romance. Creio que a moça também, porque eu era tocada dia e noite sob muitas lágrimas. Mas à medida que ela melhorava fui sendo esquecida, o que me chateou muito. Eu precisava de um milagre. Ele veio. Chamava-se Alfredo, era casado e muito envolvido com a Igreja. Não procurou a mulher para fazer sexo, mas sim para convertê-la. Conseguiu. Luna abandonou o prostíbulo com a roupa do corpo e alguns objetos pessoais, eu entre eles.
  Luna pediu a Alfredo que gravasse em mim algumas músicas sacras. Ele o fez e eu me sentia muito feliz vendo quanta alegria conseguia despertar. Passei por muitas mãos e ouvidos que encontravam em mim consolo e sabedoria. Até que umas das moças que me emprestou de Luna esqueceu de me devolver. Fiquei angustiadíssima, pois a cada dia era jogada num canto diferente e, obviamente, fui logo esquecida. A reclusão novamente.
  Mas um rapaz felizmente me achou e resolveu me usar. Gravou o mais autêntico heavy metal e me ouvia a todo volume. A época mais barulhenta de minha vida, sem dúvida. E a mais alucinada, porque o garoto e seus amigos passavam o dia fumando maconha, atingindo também minha consciência, que ficava totalmente alterada.
 O garoto se apaixonou e deu-me à sua namoradinha. Eu tocava agora uma seleção de blues. A garota pareceu ter ficado contente, mas o seu sorriso me deixou intrigada. Dias depois, entendi: com o volume no último, ela apareceu no quarto. Éramos eu e mais um cara – que não é aquele que me deu a ela – assistindo a cena. Ela começou a tirar a roupa e o homem ficou muito louco. Não só ele como também o suposto namorado, que estava junto à janela do quarto assistindo a tudo. O namorado ficou completamente descontrolado, sua vagabunda, sua puta, piranha, o que é que você pensa que tá fazendo, hein, e ela, muito dona de si, você não manda em mim, tá se alugando por quê, seu idiota, o outro num silêncio fúnebre e eu com aquele sax a todo volume. Passado o susto, a garota começou a beber uísque, eu com ela. Fizemos um porre épico. O primeiro de nossas vidas.
   A garota era bacana, e senti muito quando fui dada para um viúvo. O cara me odiava. Nunca me ouvia. Acabei novamente sendo esquecida. Fui jogada no porta-luvas. Seria agora o meu fim? Errado: ele deu carona para uma moça que depois de alguns minutos ficou irritada com as emissoras de rádio por só tocarem músicas que estavam bem longe do seu gosto musical. Ela abriu o porta-luvas: é de quê? perguntou curiosa olhando para mim. Sei lá, o idiota respondeu. Ela me pôs e ficou encantada com aquele blues. Eu estava numa fase muito depressiva e aquele blues me fez chorar. Também me comoveu o fato de ter encontrado finalmente alguém que, eu sabia, jamais iria me abandonar. O resto foi conseqüência: a garota pediu para o idiota se podia me pegar, ele deixou e fui até sua casa. Estava tudo certo e o final seria feliz, sem dúvida. Mas aí a porcaria do rádio teve de estragar tudo: enrolou-me quase que totalmente, deixando somente um pouco de espaço que é, inclusive, o meio que utilizo para lhes contar minha história. Não há mais saída: o rádio já me sorri malignamente, diverte-se com meu sofrimento. Por que eu, eu que nunca fiz mal...ugh...soc...ugh...ai...ugh...
...ugh.

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