sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Vida cassete (2001)



  Fui criada num laboratório de materiais fonográficos. Eram milhares de irmãzinhas que eu ganhava todos os dias. Cada uma com seu estilo de música gravada. Eu, por exemplo, era de música sertaneja. O dono do laboratório, El Leon, mais conhecido como El Jodón entre os funcionários, enviava semanalmente uma imensa remessa para o Paraguai. Eu deveria estar entre ela, não fosse a idéia que ele teve de presentear sua amante, Luna Durango, uma renomada prostituta, estando eu entre o agrado. A moça ficou muito satisfeita. Foi uma época de muito sexo ao som da famosa dupla na versão pirata.
  Tive um choque quando ele terminou o romance. Creio que a moça também, porque eu era tocada dia e noite sob muitas lágrimas. Mas à medida que ela melhorava fui sendo esquecida, o que me chateou muito. Eu precisava de um milagre. Ele veio. Chamava-se Alfredo, era casado e muito envolvido com a Igreja. Não procurou a mulher para fazer sexo, mas sim para convertê-la. Conseguiu. Luna abandonou o prostíbulo com a roupa do corpo e alguns objetos pessoais, eu entre eles.
  Luna pediu a Alfredo que gravasse em mim algumas músicas sacras. Ele o fez e eu me sentia muito feliz vendo quanta alegria conseguia despertar. Passei por muitas mãos e ouvidos que encontravam em mim consolo e sabedoria. Até que umas das moças que me emprestou de Luna esqueceu de me devolver. Fiquei angustiadíssima, pois a cada dia era jogada num canto diferente e, obviamente, fui logo esquecida. A reclusão novamente.
  Mas um rapaz felizmente me achou e resolveu me usar. Gravou o mais autêntico heavy metal e me ouvia a todo volume. A época mais barulhenta de minha vida, sem dúvida. E a mais alucinada, porque o garoto e seus amigos passavam o dia fumando maconha, atingindo também minha consciência, que ficava totalmente alterada.
 O garoto se apaixonou e deu-me à sua namoradinha. Eu tocava agora uma seleção de blues. A garota pareceu ter ficado contente, mas o seu sorriso me deixou intrigada. Dias depois, entendi: com o volume no último, ela apareceu no quarto. Éramos eu e mais um cara – que não é aquele que me deu a ela – assistindo a cena. Ela começou a tirar a roupa e o homem ficou muito louco. Não só ele como também o suposto namorado, que estava junto à janela do quarto assistindo a tudo. O namorado ficou completamente descontrolado, sua vagabunda, sua puta, piranha, o que é que você pensa que tá fazendo, hein, e ela, muito dona de si, você não manda em mim, tá se alugando por quê, seu idiota, o outro num silêncio fúnebre e eu com aquele sax a todo volume. Passado o susto, a garota começou a beber uísque, eu com ela. Fizemos um porre épico. O primeiro de nossas vidas.
   A garota era bacana, e senti muito quando fui dada para um viúvo. O cara me odiava. Nunca me ouvia. Acabei novamente sendo esquecida. Fui jogada no porta-luvas. Seria agora o meu fim? Errado: ele deu carona para uma moça que depois de alguns minutos ficou irritada com as emissoras de rádio por só tocarem músicas que estavam bem longe do seu gosto musical. Ela abriu o porta-luvas: é de quê? perguntou curiosa olhando para mim. Sei lá, o idiota respondeu. Ela me pôs e ficou encantada com aquele blues. Eu estava numa fase muito depressiva e aquele blues me fez chorar. Também me comoveu o fato de ter encontrado finalmente alguém que, eu sabia, jamais iria me abandonar. O resto foi conseqüência: a garota pediu para o idiota se podia me pegar, ele deixou e fui até sua casa. Estava tudo certo e o final seria feliz, sem dúvida. Mas aí a porcaria do rádio teve de estragar tudo: enrolou-me quase que totalmente, deixando somente um pouco de espaço que é, inclusive, o meio que utilizo para lhes contar minha história. Não há mais saída: o rádio já me sorri malignamente, diverte-se com meu sofrimento. Por que eu, eu que nunca fiz mal...ugh...soc...ugh...ai...ugh...
...ugh.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Tempo (2000)



     O menino sentado à beira do caminho estava preocupado com as ervas daninhas que estavam tomando conta do seu terreno. Logo, logo, tais ervas alcançariam seus pés, cresceriam ao redor deles e então não haveria mais como sair. Irritado, o moço saiu do lugar de onde estava para capinar. Era necessário, pois tão irritante quanto sair de seu confortável encosto era acompanhar as ervas crescendo em torno dele para tomar seu lugar.
A capina durou muito tempo, já que o homem, para prevenir, resolveu limpar até mesmo as estradas mais distantes. Afastou-se tanto que sua cadeira tornou-se um ponto minúsculo no horizonte.
Quando o velho voltou, pôde constatar que as ervas já haviam tomado seu lugar. Achou mais prudente, então, esperar chegar a sua vez para ocupar seu posto.
A ossada não tem pressa. Terá muito tempo para desfrutar de sua querida cadeira. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

O encontro (2013)


      

Matilda é uma mulher de meia idade que mora com a mãe. Tem um trabalho simples e mal remunerado. Dividir os custos da vida com a mãe não está nada fácil, embora não seja disso que Matilda reclame. 
Certa noite, ao chegar do trabalho, anuncia à mãe que tem um encontro. A mãe a olha com certo ar de desdém, mas nada fala. Ao sair do quarto, arrumada e pronta para sair, a mãe dispara:
- E quem é o fracassado com quem você vai se encontrar hoje?
Matilda engole com força o que lhe é dito, e não reage. Olha calada para baixo, parece aceitar o destino do sujeito pela boca da mãe. A mãe a repreende pela roupa que está usando:
- Você precisa usar roupas mais largas. Essa gordura na lateral está saliente.
Já no bar, Matilda toma sozinha sua água com gás e uma fatia de limão.
Aquele não era o único encontro que Matilda anunciaria e tampouco seria com o mesmo homem. A cada um dos anúncios à mãe sobre seus encontros, esta disparava uma séria de recriminações. Poderia ser a respeito do homem com quem Matilda sairia, que a mãe não conhecia, bem como poderia ser sobre a roupa que Matilda usava, que estaria muito recatada ou muito vulgar. Algum detalhe sempre era alvo da mãe, que não poupava Matilda de sua sinceridade feroz. Matilda aceitava calada. E nos bares, enquanto bebia sozinha sua água com gás e uma fatia de limão, pensava nos motivos pelos quais sua mãe a recriminava.
Em uma dessas noites de encontro, Matilda, já arrumada e prestes a sair, vai ao encontro da mãe e diz que vai sair com alguém. Há um tom mais desafiador na voz de Matilda. Sua mãe a olha e, sem nenhum traço de desdém ou ironia, afirma:
- Nossa, minha filha, essa roupa ficou ótima em você! Você está mesmo linda hoje!
Ainda vestida, Matilda dirige-se à cozinha e enquanto prepara um café para as duas, tira um pedaço de carne de frango congelado, coloca-o no micro-ondas e abre o pacote de arroz. Irá preparar um risoto.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Azul é a cor mais quente (2014)

Então ele me disse que seus olhos não eram azuis. Não tem problema, respondi, os seus também exalam quentura.
Descobrimos, juntos, que o calor é arco-íris.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Carta a um compositor (2007)



Eu sempre fui sua fã. Desde o início de sua carreira já me descabelava toda quando ouvia sua voz no rádio. Quando te via na televisão, chorava. Não consigo imaginar o que teria acontecido se eu fosse assistir a um show seu. Acho que desmaiaria, morreria, sei lá. Às vezes, acho que é melhor nunca te conhecer pessoalmente. Seria extremamente ridícula, não conseguiria posar como uma fã civilizada, e você já deve estar cansado de mulheres escandalosas e sem noção da realidade correndo atrás de você.
O que me leva a escrever para você é um sonho que trago comigo há muitos e muitos anos, um desejo do qual não consigo me livrar, ao contrário, ele vem piorando com o passar do tempo. Vou explicar: desde mocinha, queria que alguém escrevesse uma música para mim. Toda música romântica que ouvia, imaginava que era para mim, que eu havia sido a musa inspiradora. Ficava horas e horas pensando nisso. Até comecei a ter sonhos: algumas noites um artista vinha e confessava que compusera uma  música para mim. Começou com Chico Buarque, depois foi Caetano, o Vinícius veio do além para me contar. Outras gerações vieram: Lenine, Zé Ramalho, Oswaldo Montenegro, depois foi a vez do Zeca Baleiro, outra noite o Nando Reis, o Moska, o Chico César. Nem o Lobão escapou. Muitos compositores apareceram. Isso me deixava muito feliz, mas havia um problema: quando eu pedia qual era a música, eles não respondiam. Simplesmente sumiam e eu acordava com aquela angústia de não saber qual era a minha música. Então eu corria atrás de todos os discos do compositor, ouvia todas as músicas, tentava encontrar alguma pista, desvendar a charada, me ver em alguma delas, numa frase que fosse. Mas nada. Nem uma pista.
E vivo esse vazio de ter tantas músicas para mim sem saber quais são. Esse vazio me persegue. Preciso muito de uma composição para mim. Sou uma boa pessoa e muito discreta, mas se você quiser falar sobre uma mulher mais safada também me encaixo. Fale do que você quiser sobre mim, mas fale alguma coisa. Quero ser imortalizada e quero que seja você a fazer isso, porque sou sua maior fã. Até comprei todos os seus discos para dar uma checada se não tinha nenhuma música para mim, mas ainda não encontrei nada. Tenho certeza de que você não negará o pedido de uma mulher que te ama.
Quero me ver em uma de suas letras, seja lá quem você for.

Sua fã
 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Diálogo (2001)



             - Escute aqui, seu fracassado, se você pensa que pode acabar comigo está muito enganado. Eu não vou me render às suas apelações e aos seus truques baratos. Você é o perdedor. Descrever para todo mundo sua vida infernal, falar de seu pai insensível, de sua mãe submissa e de sua irmã revoltada, como se fosse a grande vítima do mundo, sabe o que eu acho? Ridículo. Caríssimo, minha vida foi tão terrível quanto a sua, mas, ao contrário de você, eu superei os problemas. E sabe por quê? Porque eu sou um vencedor, não preciso ficar agindo como uma vítima. E não pense que eu sinto raiva de você: eu sinto é piedade, pena mesmo. Você é um coitado, um zé-ninguém. Você está por baixo, faça o que fizer, sempre estará por baixo. Você não é nada. Boa noite.

            Sorriu-se cínico. O sorriso não se prolongou muito, mas durou tempo suficiente para se impregnar no espelho. Então, o homem dirigiu-se à cama. Dormiu logo. Como um anjo. O sorriso cínico ficou lá, no espelho, observando tudo, parecendo um morto vivo pensante.