Já fui e ainda
sou perdidamente apaixonada por pessoas com as quais nunca tive qualquer
envolvimento físico. A distância dos corpos não impediu, porém, que pelo modo
como elas utilizavam as palavras eu me sentisse completamente nua, sem
defesas, revelada. A paixão, neste caso, configura minha total entrega ao jogo
de sedução das palavras. Totalmente envolvida pelos usos da língua, sou
despertada novamente ao jogo linguístico entre nua/tua. Isso acontece porque tais pessoas têm entre suas
qualidades desde revelar algum aspecto que me constitui e que me era desconhecido
até me fazer viajar no prazer do desfrute estético.
Não tenho
dúvidas sobre a possibilidade de nos apaixonarmos pelo texto do outro, e talvez
somente pelo texto, o que para mim não é pouca coisa. Aliás, é demasiada imensa
essa paixão. Não é qualquer pessoa capaz de conquistar por conta do modo como
escreve, pelo modo como constrói as frases, as orações, pelas palavras que
utiliza, pelas expressões mais habituais, pelo que raramente utiliza. Apaixonar-se
por alguém levando em conta o que se escreve é profundo, nos dá a ilusão de
conhecê-lo profundamente, de conhecer seus caprichos linguísticos, seus desejos
lexicais, sua febre de concordância, seu apreço pelos adjetivos e advérbios,
seu tesão pelos verbos.
Lembro-me da
violenta paixão pela qual fui arrebatada em meu primeiro contato com a obra de Franz Kafka. Fui absolutamente tomada pela construção labiríntica de seus enredos, a
obsessão com que cuidadosamente construía algumas de suas personagens. Kafka
me mostra que tenho uma faceta doente, melancólica e obsessiva sem que isso
seja um problema. Kafka me fez aceitar que isso também me constitui.
Também me
lembro da paixão com que me entreguei às palavras de Dalton Trevisan. Eu, que
morro lentamente diante de algumas palavras ríspidas, sou a mesma que se
diverte e se delicia com a crueza e a crueldade com que ele corta o enredo. Com
Trevisan aprendi a ilusão ingênua das dualidades, e que ambas as faces apresentam
aspectos negativos e positivos.
As palavras de Moacyr Scliar também fizeram com que me apaixonasse. Este autor foi, aliás, meu grande
professor quando comecei a compreender o que significava escrever contos. Com
Scliar, minha relação através das palavras foi ainda mais longe: trocamos
cartas por um certo período. Ainda não havia e-mail, mensagens instantâneas, facebook,
o que deixa a história muito mais emocionante. O investimento de escrever cada
carta de próprio punho, preencher o envelope, selar, levar ao correio, é um
ritual certeiro neste meu coração que, além de carne, é composto de palavras –
boas e más – e por isso queima, vibra, dilui diante delas.
Milan Kundera foi
outro autor cujas palavras foram a lança do cupido sobre meu afeto. Sempre que
leio “A insustentável leveza do ser”, movo-me, sem problema algum, entre Tereza
e Sabina, lançando-me sem hesitar nos braços de suas palavras.
Você deve ter
notado que estou explorando minhas paixões pelas palavras produzidas a partir
de pontos de vista masculinos. Também me dei conta disso enquanto escrevia, embora
tenha me lembrado também de Clarice Lispector num determinado momento. Por que
não fui em frente? A relação é muito forte, precisarei escrever outro texto
para falar sobre esta relação. Infelizmente, as palavras de Clarice se tornaram
uma espécie de tranquilizante nas redes sociais. Para mim, sua palavra sempre
foi vulcânica e por isso tomo cuidado em lê-la. Preciso de um tempo antes de
entrar em erupção novamente.
Por se tratar
de paixão, não podemos nos esquecer da cólera que vez por outra invade o cenário
espetacular construído pelos apaixonados. O que significa dizer que a paixão nos
faz também odiar. Odiamos um determinado personagem, algumas palavras com as
quais não nos identificamos, e então confundimos nossa relação com o escritor, misturamos
tudo, somos de novo – ou seria melhor dizer sempre? – crianças nesse terreno.
As palavras riem de nós. Sim, somos presas fáceis para elas, porque até mesmo
para dizer quem somos elas são necessárias. Necessárias e sempre (im)precisas.
Nessa
alucinada miscelânea que fazemos, pode ocorrer uma outra situação, que já
vivenciei: a de me saber apaixonada por um determinado escritor(a),
compositor(a) e, ao vê-lo(s), ouvi-lo, falar com, não sem um choque inicial,
compreender que minha relação se dava por meio do texto, unicamente. Há um
momento em que isso novamente pode confundir, pensei inclusive que minha paixão
havia sido esvaziada. Mas as palavras vieram em meu socorro e me ajudaram a
reorganizar os sentidos dessa relação. E assim pude continuar extremamente
apaixonada, salva pelo reduto (in)seguro construído pelas palavras.