sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Kafka e (o amor) (d)o pai (2016)

Aproximadamente 15 anos depois, li novamente “Carta ao pai”, de Franz Kafka. E, ao contrário do que pensava, essa segunda leitura, agora feita em idade adulta, não tornou esse empreendimento mais confortável, muito ao contrário. Se na primeira vez havia uma súbita revolta que revirava o peito e me fazia posteriormente explodir de algum modo, sobretudo pela palavra, o mal-estar que o texto produzira em mim, nesse segundo investimento, foi de outra ordem: fui tomada por um imenso silêncio, que vez por outra me obrigava a parar a leitura, pousar os olhos em algum ponto da parede e permitir que algo em mim falasse, o que, neste caso, tomada pela ausência de palavras, era traduzido por lágrimas.
Há certo encantamento por parte dos críticos quando estes afirmam que a longa carta escrita por Kafka a Hermann Kafka, em 1919, tempos depois de deixar a casa dos pais, funciona como uma comprovação para a escolha de seus textos alegóricos, por privilegiar personagens vítimas de alguma instância opressora, fosse ela divina, governamental ou familiar, por exemplo.
Ao reler a obra, porém, esses aspectos tiveram para mim pouca importância. Quando conseguimos mergulhar no texto sem recorrer à imagem construída em torno de Kakfa – do escritor genial, do excelente construtor de tramas cujos personagens são, a despeito de sua vontade, levados a percorrer um caminho obscuro, repleto de amigos duvidosos, mas com inimigos bem delineados – ficamos mais sensibilizados com a tocante fragilidade daquele filho que pede um olhar mais amoroso de seu pai.
Kafka afirma em certo momento: “Eu, fraco, débil, enxuto; tu, forte, grande, amplo. Já na cabine sentia-me lamentável, e não somente diante de ti, mas diante de todo o mundo, pois eras para mim a medida de todas as coisas”. Esse é um fragmento exemplar porque apresenta muito do esforço de Kafka na carta que endereça ao pai: dizer o quanto lamenta ser quem é, elevar o pai à máxima grandeza e, se isso não fosse o bastante, dizer que seu pai é, simplesmente, “a medida de todas as coisas”. Esta expressão, inclusive, pode ser encontrada mais de uma vez na obra (pude contar pelo menos três vezes em que ele formula desse modo para falar sobre o pai).
A imagem de fracasso que Kafka constrói sobre si é tão cristalizada que em certo momento começamos a entender que o pai nem precisaria ser tão especial, posto o lugar absolutamente inferior no qual Kafka se coloca. Mas não se trata disso: há uma impressionante construção de cenas que colocam esse pai em uma esfera de poder, de alguém cuja influência na vida de Kafka é incomparável. De alguém que faz Kafka temer até os ossos e cujas palavras reverberam até as profundezas daquele homem. Ele levava muito a sério as palavras e a presença do pai, tanto que os exemplos que utiliza para elogiar ou criticar ou pai mostram como Kafka era um meticuloso observador, como estava às voltas estudando os gestos do pai, as palavras, os tons da voz, os péssimos exemplos, as contradições, as ironias fatais (para Kafka). E essa presença, colocada desde o início da carta, tem um efeito esmagador sobre o percurso existencial de Kafka. Como ele diz: “Representaste para mim todo o mistério que possuem todos os tiranos”.
Talvez esse efeito de esmagamento possa ser associado à imensa dificuldade de Kafka em construir outros laços amorosos. Ele fala na carta, inclusive, sobre sua dificuldade em se casar, deixando explícita a importância que este ato representa para sua vida: “Casar, fundar uma família, aceitar os filhos que venham, mantê-los e até encaminhá-los neste mundo inseguro é, segundo a minha convicção, o máximo a que pode aspirar um homem”. As longas explicações que Kafka utiliza para demonstrar o pavor que a simples possibilidade de concretização do ritual de casamento provoca nele podem soar covardes, mas também extremamente sensíveis a alguém que está sob o jugo dessa imagem que construiu sobre o pai e que é perturbadora para Kakfa.  
Trata-se de uma carta repleta de violência, seja nas imagens que Kafka constrói de si enquanto um derrotado, seja na imagem do pai enquanto um opressor. Mas trata-se de uma carta que, no entanto, jamais chegou às mãos do leitor mais evocado, seu pai. Ela estava entre os outros escritos que Kafka entregou a seu amigo Max Brod antes de deixar este mundo.
Esse gesto de jamais entregar a carta traz à cena o trabalho de Eni Orlandi sobre o silêncio (“As formas do silêncio”). De acordo com a pesquisadora, entre os diferentes e possíveis modos de existência dos sentidos e do silêncio, também temos este: “aquilo que é o mais importante nunca se diz”. Retomando o modo como Kafka elabora a relação com seu pai, enquanto “círculo severíssimo”, o casamento como um “perigo”, e considerando que Kafka não hesitou em abrir mão de qualquer prática de imposição, o mesmo destino se deu com as linhas produzidas para esta longa carta dirigida ao pai: a renúncia.