sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
Pintando a vida (2014)
terça-feira, 4 de novembro de 2014
As palavras e as paixões (2014)
Já fui e ainda
sou perdidamente apaixonada por pessoas com as quais nunca tive qualquer
envolvimento físico. A distância dos corpos não impediu, porém, que pelo modo
como elas utilizavam as palavras eu me sentisse completamente nua, sem
defesas, revelada. A paixão, neste caso, configura minha total entrega ao jogo
de sedução das palavras. Totalmente envolvida pelos usos da língua, sou
despertada novamente ao jogo linguístico entre nua/tua. Isso acontece porque tais pessoas têm entre suas
qualidades desde revelar algum aspecto que me constitui e que me era desconhecido
até me fazer viajar no prazer do desfrute estético.
Não tenho
dúvidas sobre a possibilidade de nos apaixonarmos pelo texto do outro, e talvez
somente pelo texto, o que para mim não é pouca coisa. Aliás, é demasiada imensa
essa paixão. Não é qualquer pessoa capaz de conquistar por conta do modo como
escreve, pelo modo como constrói as frases, as orações, pelas palavras que
utiliza, pelas expressões mais habituais, pelo que raramente utiliza. Apaixonar-se
por alguém levando em conta o que se escreve é profundo, nos dá a ilusão de
conhecê-lo profundamente, de conhecer seus caprichos linguísticos, seus desejos
lexicais, sua febre de concordância, seu apreço pelos adjetivos e advérbios,
seu tesão pelos verbos.
Lembro-me da
violenta paixão pela qual fui arrebatada em meu primeiro contato com a obra de Franz Kafka. Fui absolutamente tomada pela construção labiríntica de seus enredos, a
obsessão com que cuidadosamente construía algumas de suas personagens. Kafka
me mostra que tenho uma faceta doente, melancólica e obsessiva sem que isso
seja um problema. Kafka me fez aceitar que isso também me constitui.
Também me
lembro da paixão com que me entreguei às palavras de Dalton Trevisan. Eu, que
morro lentamente diante de algumas palavras ríspidas, sou a mesma que se
diverte e se delicia com a crueza e a crueldade com que ele corta o enredo. Com
Trevisan aprendi a ilusão ingênua das dualidades, e que ambas as faces apresentam
aspectos negativos e positivos.
As palavras de Moacyr Scliar também fizeram com que me apaixonasse. Este autor foi, aliás, meu grande
professor quando comecei a compreender o que significava escrever contos. Com
Scliar, minha relação através das palavras foi ainda mais longe: trocamos
cartas por um certo período. Ainda não havia e-mail, mensagens instantâneas, facebook,
o que deixa a história muito mais emocionante. O investimento de escrever cada
carta de próprio punho, preencher o envelope, selar, levar ao correio, é um
ritual certeiro neste meu coração que, além de carne, é composto de palavras –
boas e más – e por isso queima, vibra, dilui diante delas.
Milan Kundera foi
outro autor cujas palavras foram a lança do cupido sobre meu afeto. Sempre que
leio “A insustentável leveza do ser”, movo-me, sem problema algum, entre Tereza
e Sabina, lançando-me sem hesitar nos braços de suas palavras.
Você deve ter
notado que estou explorando minhas paixões pelas palavras produzidas a partir
de pontos de vista masculinos. Também me dei conta disso enquanto escrevia, embora
tenha me lembrado também de Clarice Lispector num determinado momento. Por que
não fui em frente? A relação é muito forte, precisarei escrever outro texto
para falar sobre esta relação. Infelizmente, as palavras de Clarice se tornaram
uma espécie de tranquilizante nas redes sociais. Para mim, sua palavra sempre
foi vulcânica e por isso tomo cuidado em lê-la. Preciso de um tempo antes de
entrar em erupção novamente.
Por se tratar
de paixão, não podemos nos esquecer da cólera que vez por outra invade o cenário
espetacular construído pelos apaixonados. O que significa dizer que a paixão nos
faz também odiar. Odiamos um determinado personagem, algumas palavras com as
quais não nos identificamos, e então confundimos nossa relação com o escritor, misturamos
tudo, somos de novo – ou seria melhor dizer sempre? – crianças nesse terreno.
As palavras riem de nós. Sim, somos presas fáceis para elas, porque até mesmo
para dizer quem somos elas são necessárias. Necessárias e sempre (im)precisas.
Nessa
alucinada miscelânea que fazemos, pode ocorrer uma outra situação, que já
vivenciei: a de me saber apaixonada por um determinado escritor(a),
compositor(a) e, ao vê-lo(s), ouvi-lo, falar com, não sem um choque inicial,
compreender que minha relação se dava por meio do texto, unicamente. Há um
momento em que isso novamente pode confundir, pensei inclusive que minha paixão
havia sido esvaziada. Mas as palavras vieram em meu socorro e me ajudaram a
reorganizar os sentidos dessa relação. E assim pude continuar extremamente
apaixonada, salva pelo reduto (in)seguro construído pelas palavras.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
As pontuações do afeto (2014)
Entre os muitos domingos de dia das mães
comemorados em minha infância, há um que me marcou de maneira especial. Naquele
ano (cuja indicação precisa me escapa), meu pai presenteou minha mãe com um
quadro. Um quadro grande, com a fotografia de uma rosa, gigantesca,
cor-de-rosa. No canto inferior esquerdo do quadro, os seguintes dizeres: “Mãe,
obrigado!”. Lembro-me de ter conseguido ler a frase, o que indica que já estava
na escola, provavelmente na primeira ou segunda série.
Já
conhecia alguns usos da vírgula, porque aquele era para mim simplesmente impossível.
Estava absolutamente convencida de que alguém utilizara a vírgula de maneira
equivocada. Era inconcebível separar minha mãe da palavra “obrigado”, que
expressava toda a minha gratidão. Desta forma, também me lembro de passar muito
tempo em frente ao quadro tentando compreender o porquê daquela vírgula, o que não
era sem angústia, já que, por um lado, não compreendia como puderam deixar
escapar aquela vírgula errada na frase, que era tão curta; por outro, se a
vírgula estava correta, mas disso eu duvidava, que regra se aplicava àquele
uso? Ao ignorar o vocativo, enlaçava minha mãe àquela gratidão, àquele imenso obrigado,
tão imenso e profundo que não havia vírgula capaz de separar um do outro.
terça-feira, 22 de julho de 2014
Sobre o esquecimento (2014)
Sempre que preciso esquecer,
todos os esforços empregados se revelam inúteis, pois constantemente estou às
voltas com o lembrar de esquecer. É quando sou levada por uma momentânea
distração, quando tropeço nessa sôfrega perseguição do lembrar, é quando o ritual
falha e me obriga a desviar o olhar, que alcanço, sem saber, o que tanto
quero. É quando, finalmente, esqueço.
domingo, 6 de julho de 2014
Facebook (2014)
Depois de tanto curtir o que era
postado por outras pessoas acabou, certo dia, curtido: pouco tempo após o
anúncio de sua morte, era possível verificar o like do próprio defunto-fantasma.
quarta-feira, 28 de maio de 2014
Lição de casa (2014)
Pintar, para a emergência do amanhã, um outro cenário, recolocando luz naquele ponto onde prevalece a escuridão.
segunda-feira, 5 de maio de 2014
Submissão (1998)
Quando mirou, não viu mais do que uma mulher com expressão cansada, algumas manchas provavelmente causadas pelos nervos, cabelos escorridos e mal cuidados, olhar triste, algumas rugas ao redor dos olhos. Havia muito tempo que não fazia uma autoavaliação e aquela, sem dúvida, provava que os cuidados estavam sendo esquecidos, que esquecera de si mesma - isso se algum dia lembrara - talvez isso tenha ocorrido.
Quando jovem era alguém tão docinha, tão meiguinha, muito tímida. A vida lhe era leve não porque ainda possuía o perfume aparentemente inesgotável da juventude, mas porque sua personalidade soava leveza, sua pessoa transpirava ânsia de viver.
Suas primeiras paixões mostraram-lhe uma dura faceta do sexo oposto, destas que acabam por encerrar a visão lírica até do mais otimista. Traições, separações inexplicáveis, sumiços com a melhor amiga, enfim, uma série de fins trágicos. Porém, de sua boa nunca se ouviram reclamações, o sorriso franco permanecia em seu rosto como se nada o abalasse.
Casou-se depois de quatro anos de namoro. Quatro anos infernais. Um homem machista, que a maltratava, que a traía, que a censurava na frente dos amigos. Mas ela persistia - ela o amava - e nada mais tinha importância.
Ele deixou bem claro que não gostava dela, apenas acostumara-se à sua imagem submissa e servil. O risco deveria ser corrido, tudo pelo amor.
Passaram-se cinco anos, sem filhos - ele não queria. No entanto, ela continuava a mesma mulher, doce, meiga, amiga. Ouvia os problemas de suas amigas e procurava resolvê-los. Os seus eram guardados a si mesma e revelados durante a madrugada - enquanto esperava o marido que poderia estar num bar bêbado, poderia estar na casa da Laura, um prostíbulo famoso e muito frequentado. Ou ainda, sedento, enterrado em seios bem feitos e bem fartos, perdido nas curvas de uma nova amante. Então ela sentia doída as lágrimas quentes que custaram sua liberdade, sua dignidade, sua vida. Nesse instante, amargo pensamento lhe invadia, as doçuras azedavam-se, o otimismo caía por terra. Seu rosto envelhecia, transformava-se. Mas bastava o sol começar a despontar, e um dia iniciava para a mulher admirada e tida como exemplo pelas amigas.
A situação tornou-se insustentável - iria falar com ele. Era a hora. Passou o dia ensaiando, treinando. No espelho sentia seu olhar, o modo como falava. O dia estava perfeito, pronto para o fim. Ele chegou; o jantar estava pronto, tudo estava servido, a casa impecável, a roupa lavada e passada, a cama cuidadosamente arrumada. Tudo estava normal e rotineiro, exceto o olhar daquela mulher que não era submisso, e sim assustado. Mas o marido não percebeu. Limitou-se a um beijo na testa como sempre, e foi jantar. Parecia ter uma fome insaciável. "Não irei interrompê-lo agora, falarei depois do jantar". Ele jantou a pediu o jornal. Deu a ele e prometeu-se que depois não lhe escaparia. "Hoje o dia foi uma porcaria. Vamos dormir". Escapou. Logo ele deitaria na cama com aquele pijama horrível, ela usaria aquela camisola velha, e ele, sem ao menor ter o trabalho de tirar a roupa, cumpriria o papel de reprodutor. Tocaria seus seios, iria por cima dela, e dali a uns cinco minutos, daria um urro nojento, viraria para o lado e dormiria. Ficaria para amanhã a conversa - sem falta.
Passaram-se seis meses desde o dia em que ela quis ter a conversa. A oportunidade foi substituída por um muro sólido - mais que seu casamento - chamado rotina. Os dias passavam lentos, quietos, iguais. Limpeza, choros alheios, consolo às amigas, silêncio, a indiferença do marido, traições, bebedeira, tudo transcorria normalmente. E ela continuava, silenciosa, calma, doce, tímida. Nada mudara. Nada
Naquela amanhã acordou e foi lavar o rosto para iniciar seus trabalhos. Ficou na frente do espelho. Quando mirou, não viu mais do que uma mulher de expressão cansada, algumas manchas provavelmente causadas pelos nervos, cabelos escorridos e
mal cuidados, olhar triste, algumas rugas ao redor dos olhos. Havia
muito tempo que não fazia uma autoavaliação e aquela, sem dúvida,
provava que os cuidados estavam sendo esquecidos - "nunca houve cuidados" -, que esquecera de si
mesma - "isso se algum dia lembrei-me"-. Talvez isso algum dia ocorreu - "sim, somente nas horas tristes".
Então um arrepio percorreu-lhe a espinha. Seus olhos brilharam.
Quando o macho da casa chegou, dirigiu-se até a cozinha e percebeu que sua mulher não estava terminando o jantar como sempre o fazia. A cozinha passou-lhe a terrível impressão de ter permanecido intocável durante todo o dia. A mesa, que sempre estava arrumada para ele jantar, continuava vazia, exceto pelo guardanapo e, em cima dele, o vaso com seus rosas de plástico desbotadas. Começou a resmungar e clamar aos infernos com citações que só ele sabia fazer. Olhou toda a casa e percebeu que não estava limpa, havia pó nos móveis. Extremamente nervoso, foi até o quarto. Iria trocar de roupa e procurar a bandida. Soltar as asas a esta altura do campeonato? Ela não o conhecia. O ódio já o estava desfigurando.
Quando chegou ao quarto, não acreditou no que viu. Saiu do quarto e voltou. Devia estar sonhando. Não estava. Deitada na cama, sua mulher permanecia imóvel, quase transfigurada pela quantidade de sangue que cobria seu corpo. Estava sem as orelhas, os dedos dos pés e das mãos haviam sido decepados, os cabelos cortados e espalhados pelo quarto, o corpo totalmente perfurado, o cheiro de sangue presente no ar. O lençol, outrora branco, estava agora pingando sangue. Ele parou e ali ficou, imóvel, por mais de uma hora, quase indiferente à cena. Ficou imaginando quem poderia ter feito aquilo com sua pobre mulher. Então, correu até o banheiro para vomitar. Por mais de meia hora eliminou pela boca a refeição do dia. Exausto, levantou-se e foi lavar o rosto. Esfregou com força, com desespero. No espelho,um bilhete manchado de sangue. Letras trêmulas diziam: "Foi suave, não se preocupe, estou ficando bem..."
terça-feira, 1 de abril de 2014
Carta para Samantha/"Her" (2014)
Prezada Samantha:
É bastante estranho iniciar estas linhas sabendo que
estou escrevendo para um programa de computador. Posso explicar melhor minha
sensação afirmando que estou tomada por uma espécie de susto. No entanto, poderia
ser pior: eu poderia estar te amando. Ou, ainda, disputando com você o amor de
um homem.
A princípio, essa concorrência seria um pesadelo
para mim: você leva um tempo absurdamente menor para conhecer, ou, melhor
dizendo, para acessar esse homem. Como você teve acesso a todos os arquivos que
supostamente falam desse homem, você faz uma determinada leitura de todos os
dados. Já eu consegui somente ler alguns escritos, compreender supostamente
algumas palavras ditas e, ainda assim, cada vez que releio, cada vez que me deparo com novas
e velhas palavras ditas, descubro alguma outra coisa, algum novo sentido,
alguma outra pista deste homem que amo. Por isso, seria enlouquecedor de minha
parte qualquer tentativa de traçar um plano que tentasse alcançar o que você faz.
Tal impossibilidade, contudo, não me atormenta.
Certamente, você ganharia pontos por compor músicas
para e com este homem, enquanto eu mal cantarolo algumas canções. Eu mesma
fiquei encantada com esta sua capacidade. Até invejei.
Porque, de minha parte, qualquer tentativa mais séria de compor e de escrever recairia
facilmente no ridículo.
Por ser um software, você não erra duas vezes. Já
eu, se pudesse ser comparada a você, seria um programa paródia,
porque seria aquele cujo defeito é o de errar, e de
recair no erro, inadvertidamente.
Ocorre que este ponto, o do erro, Samantha, é
justamente o que demasiado expõe qualquer homem: não está devidamente envolvido
um homem que demonstra nervosismo em seu segundo erro, naquela frase infeliz
que retorna, na recorrência daquele tropeço sentimental, qualquer idiotice que repetimos.
Pior mesmo é aquele homem que tem seu nível de paciência consideravelmente
afetado. Isso é um péssimo sinal, e comparece exatamente depois de nossos
segundos erros. Fingir paciência, de
início, é fácil e prático. É a dimensão do tempo, somada aos erros, que mostram
as verdades de um humano.
Também, e infelizmente, é exatamente naquilo que
você não erra o que a faz perder o que de mais profundo e bacana há em um
relacionamento: conhecer um cúmplice existencial exatamente quando falhamos,
saber que este homem, parceiro que é, se importa com você, descobrir o quanto um
homem pode e quer exercitar sua paciência, seu carinho, sua generosidade e o
crescimento de ambos nestas situações, em que o sorriso amarelo ganha espaço.
E o corpo, minha prezada, o corpo é outro ponto
fundamental. Ao contrário do tão propalado clichê, os homens não são iguais. E se
há homens que se seduzem pela voz, se há homens que desejam um determinado tipo
de corpo, há aqueles que querem uma voz com corpo ou um corpo com voz. Há
diferentes homens para esse vasto universo de mulheres com diferentes encantos e belezas.
Entendo perfeitamente o fato de Theodore e os outros milhares de homens com os quais você se envolveu se tornarem
desinteressantes em tão pouco tempo. Entendo o fato de você precisar alçar
outros voos em sua programação. Creio que também ficaria extremamente tomada de
tédio e iria querer distância de alguém de quem sei tudo em tão pouco tempo e
de acordo com um determinado código de leitura. Mas por aqui, nas (des)entendidas
linguagens que nos circundam, minha logical software girl, as coisas não são
tão simples. Há equívocos, silêncios, há paixões, há amores suaves e desmedidos,
há amizades coloridas, há afetos em jogo que nunca são compreendidos. Há afetos
em construção. E são tantos os movimentos! Ainda bem. Você me ensinou a desejar
e a amar ainda mais o movimento, até mesmo a desejá-lo. Em mim e no outro. Você me fez entender que desejo o mistério.
Uma mulher
terça-feira, 18 de março de 2014
Canal dominical megárico (2000)
- Eu te amo (gritos na plateia). A minha paixão foi desde o início forte e irresistível. É um amor diferente de tudo o que já vivi antes. É um amor verdadeiro. Quando eu te vejo eu fico cego. Você é minha droga. E eu me viciei em você (mais gritos). Meus olhos, ouvidos e lábios não são mais os mesmos. Eles agora têm uma dona: você. As pessoas sempre invejaram o nosso amor. E eu gosto muito de fazer amor com você (agora são gritos histéricos). Volta, minha gatinha manhosa, eu não sei viver sem você (gritos insuportáveis).
- Então, o que você vai fazer, ele
disse que te ama ao vivo. São milhões de pessoas nos assistindo. Milene, você
perdoa o Christian? E a plateia, perdoaria (gritos, gritos, gritos). Bem,
Milene, se você não quiser ficar com ele, tudo bem, tem um monte de meninas
querendo ficar com ele.
- Mas veja bem, esse sem vergonha me traiu com minha irmã e...
- Milene, vou te interromper um pouquinho para dar uma notícia séria: estamos em primeiro lugar no Ibope neste momento!!! Palmas para nós!!! (gritos na plateia). Bem, onde estávamos? Ah, sim: Luís, coloca uma música bem romântica pro casal. O quê, o tempo tá acabando? Milene, a gente não tem mais tempo: você perdoa o Christian e ganha do programa uma viagem com direito a acompanhante para Porto Seguro ou então, queira Deus que não, termina tudo?
- Mas veja bem, esse sem vergonha me traiu com minha irmã e...
- Milene, vou te interromper um pouquinho para dar uma notícia séria: estamos em primeiro lugar no Ibope neste momento!!! Palmas para nós!!! (gritos na plateia). Bem, onde estávamos? Ah, sim: Luís, coloca uma música bem romântica pro casal. O quê, o tempo tá acabando? Milene, a gente não tem mais tempo: você perdoa o Christian e ganha do programa uma viagem com direito a acompanhante para Porto Seguro ou então, queira Deus que não, termina tudo?
- Hum... hum... ah, eu perdoo. Eu
amo muito ele.
- Bem, já que é assim, podem se abraçar. Ei, você aí da direita, não precisa chorar não, terminou tudo bem. Ah, tá chorando porque o final foi feliz. É, a vida é muito linda mesmo. E falando em vida linda, nós fomos conhecer a casa de uma modelo, atriz e cantora que vocês adoram. Mas antes ela vai conversar com a gente sobre a sua plástica nos seios que não deu muito certo: o médico colocou menos silicone do que ela havia pedido. É um fato muito triste e que nós vamos conferir depois dos comerciais, não percam.
- Bem, já que é assim, podem se abraçar. Ei, você aí da direita, não precisa chorar não, terminou tudo bem. Ah, tá chorando porque o final foi feliz. É, a vida é muito linda mesmo. E falando em vida linda, nós fomos conhecer a casa de uma modelo, atriz e cantora que vocês adoram. Mas antes ela vai conversar com a gente sobre a sua plástica nos seios que não deu muito certo: o médico colocou menos silicone do que ela havia pedido. É um fato muito triste e que nós vamos conferir depois dos comerciais, não percam.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
Vida cassete (2001)
Fui criada num laboratório de
materiais fonográficos. Eram milhares de irmãzinhas que eu ganhava todos os
dias. Cada uma com seu estilo de música gravada. Eu, por exemplo, era de música
sertaneja. O dono do laboratório, El Leon, mais conhecido como El Jodón entre
os funcionários, enviava semanalmente uma imensa remessa para o Paraguai. Eu
deveria estar entre ela, não fosse a idéia que ele teve de presentear sua
amante, Luna Durango, uma renomada prostituta, estando eu entre o agrado. A
moça ficou muito satisfeita. Foi uma época de muito sexo ao som da famosa dupla
na versão pirata.
Tive
um choque quando ele terminou o romance. Creio que a moça também, porque eu era
tocada dia e noite sob muitas lágrimas. Mas à medida que ela melhorava fui sendo
esquecida, o que me chateou muito. Eu precisava de um milagre. Ele veio.
Chamava-se Alfredo, era casado e muito envolvido com a Igreja. Não procurou a
mulher para fazer sexo, mas sim para convertê-la. Conseguiu. Luna abandonou o
prostíbulo com a roupa do corpo e alguns objetos pessoais, eu entre eles.
Luna
pediu a Alfredo que gravasse em mim algumas músicas sacras. Ele o fez e eu me
sentia muito feliz vendo quanta alegria conseguia despertar. Passei por
muitas mãos e ouvidos que encontravam em mim consolo e sabedoria. Até que umas
das moças que me emprestou de Luna esqueceu de me devolver. Fiquei
angustiadíssima, pois a cada dia era jogada num canto diferente e,
obviamente, fui logo esquecida. A reclusão novamente.
Mas
um rapaz felizmente me achou e resolveu me usar. Gravou o mais autêntico heavy
metal e me ouvia a todo volume. A época mais barulhenta de minha vida, sem
dúvida. E a mais alucinada, porque o garoto e seus amigos passavam o dia
fumando maconha, atingindo também minha consciência, que ficava totalmente
alterada.
O garoto se apaixonou e deu-me à sua namoradinha. Eu tocava agora uma seleção
de blues. A garota pareceu ter ficado contente, mas o seu sorriso me deixou
intrigada. Dias depois, entendi: com o volume no último, ela apareceu no
quarto. Éramos eu e mais um cara – que não é aquele que me deu a ela –
assistindo a cena. Ela começou a tirar a roupa e o homem ficou muito louco. Não
só ele como também o suposto namorado, que estava junto à janela do quarto
assistindo a tudo. O namorado ficou completamente descontrolado, sua vagabunda, sua
puta, piranha, o que é que você pensa que tá fazendo, hein, e ela, muito dona
de si, você não manda em mim, tá se alugando por quê, seu idiota, o outro num
silêncio fúnebre e eu com aquele sax a todo volume. Passado o susto, a garota
começou a beber uísque, eu com ela. Fizemos um porre épico. O primeiro de
nossas vidas.
A
garota era bacana, e senti muito quando fui dada para um viúvo. O cara me
odiava. Nunca me ouvia. Acabei novamente sendo esquecida. Fui jogada no
porta-luvas. Seria agora o meu fim? Errado: ele deu carona para uma moça que
depois de alguns minutos ficou irritada com as emissoras de rádio por só
tocarem músicas que estavam bem longe do seu gosto musical. Ela abriu o
porta-luvas: é de quê? perguntou curiosa olhando para mim. Sei lá, o idiota
respondeu. Ela me pôs e ficou encantada com aquele blues. Eu estava numa fase
muito depressiva e aquele blues me fez chorar. Também me comoveu o fato de ter
encontrado finalmente alguém que, eu sabia, jamais iria me abandonar. O resto
foi conseqüência: a garota pediu para o idiota se podia me pegar, ele deixou e fui até sua casa. Estava tudo certo e o final seria feliz, sem dúvida. Mas
aí a porcaria do rádio teve de estragar tudo: enrolou-me quase que totalmente,
deixando somente um pouco de espaço que é, inclusive, o meio que utilizo
para lhes contar minha história. Não há mais saída: o rádio já me sorri
malignamente, diverte-se com meu sofrimento. Por que eu, eu que nunca fiz
mal...ugh...soc...ugh...ai...ugh...
...ugh.
Assinar:
Postagens (Atom)